quinta-feira, 27 de março de 2008

Manicômio

(Ao menino dos olhos claros,
somos loucos para não pirar.)


- E ai como vai a vida?
- Um caos
- É isso mesmo, não pode deixar a peteca cair. Se a vida quiser estabilizar você arruma um problema, um questionamento filosófico, brigue com sua família, seus amigos, qualquer coisa para não voltar a estabilidade e monotonia. Afinal uma vida muito certinha não combina com você.
Um trago na cachaça
Dois tragos no cigarro
- Acho que sofro de transtorno bipolar!
- Não é que você sofra de transtorno bipolar, é que você gosta de emoções intensas e extremas. Quando você está muito feliz você aproveita bastante, curti todas, mas quando está triste você gosta de curtir a melancolia para se recolher e pensar sobre a vida. Isso é bom.
- Por isso que eu gosto de ter amigos inteligentes com vocações psicanalíticas, me entendem melhor do que eu.
Dois tragos na cachaça.
Três tragos no cigarro.
- Nossa olha quanta estrela cadente!!!
- Tá doido? Isso é chuva. Você tem que parar de usar essas drogas que as enfermeiras te fazem engolir. E também acho que você não deve mais freqüentar as seções de eletrochoque.
- Porra de maldito mundo!!!
Três tragos na cachaça.
Quatro tragos no cigarro.
- Nossa hoje eu vi um quadro de Salvador Dali maravilhoso, me apaixonei. Parece com umas alucinações que tenho ultimamente.
- Você e essa maldita mania de inventar paixões! Paixão por música, paixão por literatura, paixão por mosaico, paixão por desenho, paixão por pintura, paixão por política. Nada que dá dinheiro.
- “Porra pai, onde o senhor estava na minha primeira infância que não me ensinou o valor do suor do trabalho, o valor de sacrificar a juventude, a vida adulta e uma parte da velhice para que ‘eles’ pudessem lucrar em cima de todo meu esforço e labor, o valor de me trancafiar em um escritório no mínimo oito horas por dia, ouvir desaforo do chefe, ganhar um salário de merda que não paga nem o plano de saúde e a cerveja. Agora veja no que me tornei, um louco fora do mundo!”
Quatro tragos na cachaça.
Cinco tragos no cigarro.
- Louco? Você? Imagina!Louco é esse maldito mundo de poses e farsas, de valorização excessiva ao corpo em que o tamanho do bispes e da bunda valem mais do que o tamanho do cérebro. Loucura é a anorexia, a bulimia. Loucura é tomar remédio pra dormir, pra acordar, pra ficar feliz, pra esquecer, para não sentir fome. Loucura é viver de fachada, é arranjar explicação racional pro sentimento, é mentir para si e achar que é verdade. Louco é esse mundo de violência exacerbada, é matar uma prostituta a paulada, é bater com uma barra de ferro no cara que bateu no seu carro, é torturar um ser humano e achar que está educando, é se suicidar com uma faca de plástico num presídio. Loucura é enfrentar duas horas de engarrafamento e não querer abrir mão do seu carro em favor do transporte coletivo. Loucura é pobre ser de direita. Loucura é proibir o aborto, o uso da camizinha, que livre arbítrio de cú é rola. Loucura é essa insônia coletiva, essa angústia infinita.
- Pois é, louco é aquele que chama Van Gogh de louco. Só porque o cara cortou a orelha. A verdade é que neste ato, ele queria transmitir toda essa apoteose pós-moderna de resignifacação da vaca passando pela transvaloração do ser em si mesmo com o uso de imagens friamente calculadas instrumentalizando todo um acaso expandindo o senso de mudança conceituando a instabilidade e burlando a realidade dissolvendo o concreto em água. O cara era um gênio! Se pelo menos eu tivesse nascido gênio poderia ficar satisfeita, mas não, me fizeram medíocre. Estou fadado a morrer sendo um rosto desconhecido na multidão.
Cinco tragos na cachaça.
Seis tragos no cigarro.
- Vixe! A chuva está aumentando... está alagando tudo! É o apocalipse!
- Que nada, é só mais um governo que não se preocupa com a infra-estrutura das grandes cidades. O mundo vai acabar mesmo é em fogo!


Goya - Saturno, 1820-1823 (óleo sobre tela, Madrid, Museo del Prado)