EPITÁFIO
Aqui jaz o sol
Que criou a aurora
E deu luz ao dia
E apascentou a tarde
O mágico pastor
De mãos luminosas
Que fecundou as rosas
E as despetalou
Aqui jaz o sol
O andrógino meigo
E violento, que
Possuiu a forma
De todas as mulheres
E morreu no mar
SONETO DE FIDELIDADE
De tudo, ao meu amor serei atento
Antes, e com zelo, e sempre, e tanto
Que mesmo em face do maior encanto
Dele se encante mais meu pensamento.
Quero vivê-lo em cada vão momento
E em seu louvou hei de espalhar meu canto
E rir meu riso e derramar meu pranto
Ao seu pesar ou seu contentamento.
E assim, quando mais tarde me procure
Quem sabe a morte, angústia de quem vive
Quem sabe a solidão, fim de quem ama
Eu possa me dizer do amor (que tive):
Que não seja imortal, posto que é chama
Mas que seja infinito enquanto dure.
SONETO DA QUARTA-FEIRA DE CINZAS
Por seres quem me foste, grave e pura
Em tão doce surpresa conquistada
Por seres uma branca criatura
De uma brancura de manhã raiada
Por seres de uma rara formosura
Malgrado a vida dura e atormentada
Por seres mais que a simples aventura
E menos que a constante namorada
Porque te vi nascer de mim sozinha
Como a noturna flor desabrochada
A uma fala de amor, talvez perjura
Por não te possuir, tendo-te minha
Por só quereres tudo, e eu dado-te nada
Hei de lembrar-te sempre com ternura
O VERBO DO INFINITO
Ser criado, gerar-se, transformar
O amor em carne e a carne em amor, nascer
Respirar, e chorar, e adormecer
E se nutrir para poder chorar
Para poder nutrir-se; e despertar
Um dia à luz e ver, ao mundo e ouvir
E começar a amar e então sorrir
E então sorrir pra poder chorar.
E crescer, e saber, e ser, e haver
E perder, e sofrer, e ter horror
De ser e amar, e se sentir maldito
E esquecer tudo ao vir um novo amor
E viver esse amor até morrer
E ir conjugar o verbo no infinito...
SONETO AO CAJU
Amo na vida as coisas que têm sumo
E oferecem matéria onde pegar
Amo a noite, amo a música, amo o mar
Amo a mulher, amo o álcool e amo o fumo.
Por isso amo o caju, em seu resumo
Esse materialismo elementar
Fruto de cica, fruto de manchar
Sempre mordaz, constantemente a prumo
Amo vê-lo amarrado ao cajueiro
À beira-mar, a copular com o galho
A castanha brutal como que tesa:
O único fruto – não fruto – brasileiro
Que possui consistência de caralho
E carrega um culhão na natureza.
Moraes, Vinícios de, 1913-1980.
Livro de Sonetos. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.
ps: odeio os gênios porque eles me fazem sentir tão medíocre... mas amo ler suas poesias.