domingo, 19 de agosto de 2007

A abelha, a formiga e a camila

Salvador Dali


Hoje olhei para minhas pernas e elas estavam cabeludas. Senti-me bem por ter as pernas cabeludas. Senti-me bem por não ter quem me diga que elas assim o estão. Algumas pessoas sentem a necessidade de dizer coisas que na verdade não precisam ser ditas pois são tão obvias que não precisam ser verbalizadas. Sei que minhas pernas estão cabeludas e não preciso que me digam o óbvio. Estou feliz com elas porque são minhas e faço delas o que bem entendo. Elas me permitem andar e isso basta.
Às vezes me dizem: “essa é a Camila que conheço”. Bem, eu vos digo, e como poderia não ser. Todas as camilas que vocês encontraram em todos os dias em que esbarraram comigo, como poderia não ser eu, a mesma camila. Um pouco diferente talvez se pensarmos como alguns filósofos que nos dizem que não só não podemos entrar no mesmo rio duas vezes, como não se pode entrá-lo sequer uma vez, já que, nem o rio nem nós mesmos seríamos a mesma matéria de alguns segundo atrás. Como diria Raul, uma metamorfose ambulante. Mas essa metamorfose que a cada segundo me torna uma nova pessoa, todas elas, sou eu. Esta que vês desnudam em sua frente. Pois não poderia ser outra coisa senão eu mesma. A de pernas cabeludas ou raspadas. A que às vezes está triste e a que fala putaria sem medir palavras e sem medo de ser julgada, pois ninguém que habite este planeta poderá me julgar pelo que sou ou pelo que deixo de ser.
Sinto-me bem aqui sentada em meio a tantas formigas que às vezes me atacam e provocam coceiras. Agora a pouco vi um duelo entre uma formiga e uma abelha. Formidável! Estava aqui sentada com meu livro quando ouvi um zunido que me chamou a atenção. Olhei para trás e procurei de onde vinha o barulho. Vi aqueles dois seres se atracando em meio à grama. Primeiro pensei que a abelha atacava a formiga, imaginei que ela fosse mais forte pois tinha asas. Mas abelhas não atacam formigas. Elas procuram flores, procuram mel. Não se preocupam com a mediocridade da formiga que se arrastam no chão e não tem asas. Pensei que a abelha venceria.
Não detive minha atenção por muito tempo com essas meticulosidades da vida e voltei-me para o livro que lia. Mais tarde vi aquela formiga carregando aquela abelha gigante que parecia ser mais forte. Que fantástico, a formiga havia vencido a batalha e carregava seu troféu como se estivesse embriagada, não conseguia carregar seu premio pois esta era muito pesada, mas não desistia.
Vinham em minha direção e resolvi interferir no processo. Não sei bem o porquê tomei tal atitude, simplesmente o fiz sem pensar, e empurrei a formiga e sua abelha que voaram longe, uma para cada lado, assim sem piedade. Não me retorci de remorso por ter separada a formiga de seu troféu que tão deveramente conquistara. Pensei apenas que a vida é assim. Uma cadeia alimentar sem propósito, e que por alguns instantes estou no alto dessa cadeia e me aproveito de tal situação.
Não me vejam uma pessoa má por isso caro leitor. Tenho certeza que em algum momento de suas vidas também tomaram atitudes drásticas e sem propósito de valores não muito nobre. Seria o mesmo que condenar uma formiga por ter matado uma abelha, e para que uma formiga atacaria uma abelha? seria inveja de suas asas. As formigas simplesmente comem vermes e atacam abelhas porque é de sua natureza, e não as julgo por isso. Também sou um animal, e muitas vezes não penso sobre minhas atitudes. Não me recordo bem agora, acho que foi Saramago quem disse que se fossemos pensar minuciosamente o que faríamos em cada situação de nossas vidas o momento teria passado e então não teríamos vivido e aproveitado a beleza de viver.
Confesso que sou puro instinto e sentimento, e poucas vezes sou racional. Eu sinto e acredito em meus sentimentos, não penso sobre eles, simplesmente reajo. Viver já é interferir no processo da vida, não há outra escolha. As formigas me incomodam e por isso de vez em quando as mato sem remorso. Às vezes as formigas me picam e deixam marcas, não as culpo por isso. A vida passa e preciso vivê-la. Seria o mesmo que exigir de um artista que ele saiba porque ele pinta, ele simplesmente o faz e isso basta, sentir uma obra de arte, é a isso que um artista se propõe e não podemos cobrar mais do que sua condição possa oferecer, basta apreciar. Agora me calo, pois como já disse, existem coisas que não precisam ser ditas, são óbvias demais para serem repedidas tantas vezes.

10 comentários:

Anônimo disse...

as pessoas dizem que sua perna está ou não cabeluda porque a sua personalidade é um construto não só pessoal, mas também social. Quando alguém diz o que é daquilo que o é, e o que não é daquilo que não o é, tenta-se na verdade estabelecer o fato que compartilham de uma mesma realidade, um mesmo conjunto de reações e concepções pré-esboçadas.

Entretanto, quem somos "vaza" pelas rachaduras desses construtos socialmente aceitáveis. Por mais que pense que ninguém possa te julgar, é justamente isso que cada um fez, faz e fará, para que a ilusão consensual compartilhada se perpetue, de certa forma "tapando" esses buracos pelos quais a alma vaza.

Acho curioso mencionar o conflito, justamente, de uma diáfana abelha de asas vítreas e de uma rastejante formiga, comedora de carcaças(um tipo de fungo, na verdade). São ambos insetos sociais, vivem com a colônia, da colônia e pela colônia.

O que significa interceder na batalha em que o mais fraco e rastejante está ganhando?
Você parece acreditar que a vida é "uma cadeia alimentar sem propósito", mas você intercedeu porque de alguma forma quer projetar ao mundo a sua visão de que a bela abelha alada é mais forte, i.e., uma imposição do pessoal sobre o consensual. Não estaria assim tentando dizer o que é daquilo que não o é?

Acho que o status quo lhe agride, e isso é bom ...

Cami Silveira disse...

ora pois, uma bela análise sócio-psicológica! é claro que me simpatizo mais com as abelhas, prefiro as asas, mas me assumo incapaz diante do mundo, pois as formigas sempre existirão! a cadeia alimentar sem propósito, tem na verdade, muitos propósitos, mas não adianta divagar sobre isto, as coisas assim o são, e nada posso fazer para mudar, por mais que queira profundamente!
não me diga que em algum momento de sua vida também não se sentiu julgado por ser o que é, e se sentiu mal por isso, pois não pode mudar, mas certamente será julgado e nada podes fazer. não me diga que não nos impuseram uma realidade padrão frágil e questionável a qual não queres assumir para si! esse texto é para mim um grito de liberdade, pois não quero fazer parte desses moldes que não me permitem extravazar! e não questionar isso, para mim, seria aceitar esse mundo fácil demais! ainda quero mudá-lo, e gosto de beber desta ilusão!
ora pois, tenho minhas opiniões sobre o mundo e sobre a vida e continuarei com elas porque também sou incapaz de mudar, isso me aflinge e me machuca as vezes, mas prefiro ser julgada por ter as pernas cabeludas do que ter que raspá-las todos os dias para agradar os outros!
podemos conversas mais sobre isso um dia! me procure e divagaremos mais sobre as incapacidades e sonhos da vida! muito interessante!

Anônimo disse...

Alguem disse uma vez que o ato de pensar somente já é um gesto que desafia toda a realidade, pois quando você diz que "isto é real", você automaticamente está dizendo que centenas de outras não é real! afirmar o que quer que seja é uma forma de impor sua visão de mundo. Acontece que eu acho que nunca devemos deixar que o que os outros afirmam sobre nós seja mais importante do que nós mesmos afirmamos com nossos gestos.

Anônimo disse...

Sou e fui julgado pelo que sou, até chegar ao ponto em que comecei a envenenar minha alma com conformidade e adequação à expectativas. É uma morte dolorosa e lenta em prol de uma ordem e um progresso fugidíos.

Peço só que tente não esquecer que, apesar de tudo, você também tem as suas diáfanas asas vítreas.

Cami Silveira disse...

me assumo na incapacidade de não conseguir me adequar as expectativas! já tentei e fui muito infeliz tentando ser algo que não poderia! agora que sei disto prefiro continuar em minha condição crítica em relação a essa ordem estabelecida!
e eu te pergunto, progresso para quem? não acredito que isso seja um progresso! se fosse acreditar em algo diria que estamos regredindo, atrofiando mentalmente e moralmente!
e jamais diga a alguém que ela não pode ser o que é ou o que deseja ser baseando-se no que você toma como verdade para si!
prefiro acreditar eternamente nos sonhos! e essa é minha verdade, e se for de vidro que seja de diamante!

Cami Silveira disse...

Por favor, não me analise
Não fique procurando cada ponto fraco meu.
Se ninguém resiste a uma análise profunda,
Quanto mais eu...
Ciumento, exigente, inseguro, carente
Todo cheio de marcas que a vida deixou
Vejo em cada grito de exigência
Um pedido de carência, um pedido de amor.

Amor é síntese
É uma integração de dados
Não há que tirar nem pôr
Não me corte em fatias
Ninguém consegue abraçar um pedaço
Me envolva todo em seus braços
E eu serei o perfeito amor.

(Mário Quintana)

Cami Silveira disse...

DEFICIÊNCIAS

Deficiente é aquele que não consegue modificar sua vida, aceitando as imposições de outras pessoas ou da sociedade em que vive, sem ter consciência de que é dono do seu destino.

Louco é quem não procura ser feliz com o que possui.

Cego é aquele que não vê seu próximo morrer de frio, de fome, de miséria, e só tem olhos para seus míseros problemas e pequenas dores.

Surdo é aquele que não tem tempo de ouvir um desabafo de um amigo, ou o apelo de um irmão. Pois está sempre apressado para o trabalho e quer garantir seus tostões no fim do mês.

Mudo é aquele que não consegue falar o que sente e se esconde por trás da máscara da hipocrisia.

Paralítico é quem não consegue andar na direção daqueles que precisam de sua ajuda.

Diabético é quem não consegue ser doce.

Anão é quem não sabe deixar o amor crescer.

Miseráveis são todos que não conseguem enxergar a grandeza de Deus.

(Mário Quintana)

Lis Motta disse...

Obrigada pelo comentário. Mas estou me perguntando: Eu conheço você? Você me conhece? Ufes?
Se puder, responda...
Gostei de algumas coisas suas também...
Um abraço.

Anônimo disse...

O quadro do dalí que vc pôs é foda. Destoa dos impressionistas anteriores, né?

Anônimo disse...

O dia que em meu blog, ou em qualquer outro campo de mim, eu puder ver-me em construção de fato, me tocando e vivendo, sentirei um regozijo de quem acabou de conquistar uma pequena vitória humana.

Acredito que toda esta discussão é reflexo do que em você se constrói por estes tempos. Fico muito feliz por ti, belíssima amiga!